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Chuck Berry 1926 - 2017

O músico foi o verdadeiro pai do rock, um modelo para os heróis da guitarra e o construtor da inventiva linguagem poética que ainda inspira rebeldes dos quatro cantos do planeta

Paulo Cavalcanti Publicado em 19/04/2017, às 18h27 - Atualizado às 19h04

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O Adeus ao Pai do Rock and Roll  - Divulgação
O Adeus ao Pai do Rock and Roll - Divulgação

Em 1986, quando Chuck Berry celebrou 60 anos, o discípulo Keith Richards decidiu homenagear o mestre servindo como mentor do documentário Chuck Berry – O Mito do Rock, dirigido por Taylor Hackford. Morando por várias semanas na mesma propriedade que Berry, Richards aturou a rabugice e a teimosia do artista. O guitarrista dos Rolling Stones tinha como missão mostrar que o pioneiro ainda era o músico vital que ajudou a criar o rock and roll nos anos 1950. Mas quando chegou a grande noite do show para o filme, no Fox Theather, em St. Louis, o homem estragou o trabalho do stone. Mudou o tom e os arranjos das canções e tocou guitarra de qualquer jeito. Parecia que Richards se preocupava mais com as canções de Chuck Berry do que o próprio compositor. No final, Richards estava jogado em um canto, totalmente esgotado. “Em apenas uma noite, ele me deu mais dor de cabeça do que o Mick [Jagger] me deu em uma vida inteira”, disse. Depois, afirmou com um tom resignado: “Mas também não consigo deixar de amá-lo”.

Como Keith Richards percebeu, Chuck Berry era complexo e cheio de contradições. Ele parecia confirmar o lema: aprecie a música, mas não necessariamente o homem por trás dela. O guitarrista, que morreu no dia 18 de março, aos 90 anos, de causas naturais, em Wentzville (Missouri), ainda projeta uma sombra enorme. Na década de 1950, quando o rock surgiu, inúmeros músicos inovadores poderiam clamar ter dado origem ao estilo. Elvis Presley sem dúvida foi o rei, um arquétipo seguido por décadas. O garoto de Memphis personificou a imagem de rebeldia do novo e excitante estilo musical. O som que fazia também era rico e inovador. Mas Elvis não era compositor nem um músico virtuoso. Ele dependia do instinto e de ajuda externa para criar a música revolucionária pela qual ficou famoso.

Então, se Elvis foi o rei, Chuck Berry pode ser considerado, com toda a justiça, o pai do rock. O rock and roll surgiu de uma trombada de elementos retirados das raízes da música branca e negra. Mais velho que seus companheiros roqueiros de Memphis, Berry já tinha em seu DNA o blues, o rhythm and blues e o jazz. Como Elvis, era uma esponja musical. E, a exemplo do colega Ray Charles, ele era um afro-americano adepto da country music. Também aprendeu muito ao ouvir Nat King Cole, seu cantor favorito.

O garoto nascido Charles Edward Anderson Berry no dia 18 de outubro de 1926, em St. Louis (Missouri), era fruto de uma família de classe média numerosa. A família Berry tinha em mente que seus filhos também poderiam fazer parte do sonho americano. Educação era primordial. O menino Chuck, em particular, se interessou por poesia e música clássica. A dicção era algo importante para ele. Por toda a vida, buscou falar de maneira clara, sem gírias incompreensíveis. O domínio da língua inglesa, misturado ao gosto pela estrutura poética, no futuro o ajudaria a criar algumas das letras mais evocativas da história da música popular.

Mas, apesar de aplicado, Berry era inquieto e viveu uma adolescência tumultuada. Teve inúmeros empregos, passou três anos preso em um reformatório depois de participar de um roubo de carro e se casou ainda jovem.

Chuck Berry desenvolveu seu estilo de tocar guitarra ouvindo os mestres do jazz e a country music. Casado, tinha uma família para sustentar e não sabia se deveria levar a carreira musical a sério. Felizmente, ele tomou a decisão certa quando viu várias coisas acontecendo. Em 1951, o cantor e saxofonista Jackie Brenston, acompanhado pelo The Kings of Rhythm, banda do jovem Ike Turner, gravou “Rocket 88”, uma das primeiras manifestações do que viria a ser chamado de rock and roll. Paralelamente, Bill Haley, um músico branco de Michigan, fazia experiências bem-sucedidas juntando o western swing (a música country com balanço) ao rhythm and blues.

Com esses exemplos em mente, Berry começou a tocar de forma profissional nos clubes de St. Louis. O som dele não era nem jazz nem blues, era algo totalmente diferente. Ele então rumou para Chicago, a fim de buscar uma oportunidade na Chess Records, que gravava lendas do blues, como Muddy Waters, Bo Diddley e Willie Dixon. Os executivos Phil e Leonard Chess gostaram do som e da imagem do aspirante a astro. Em julho de 1955, Berry lançou pela companhia seu primeiro single, “Maybellene”.

Quem recebe o crédito por ter criado o termo rock and roll foi o DJ Alan Freed. Quando “Maybellene” saiu, Freed conheceu Berry e o ajudou a divulgar a canção, que chegou ao quinto lugar da parada, tornando Berry conhecido. Mas o sucesso imediato cobrou um preço: Berry teve que ceder parceria de composição a Freed e a Russ Frato, tendo que também dividir os royalties com eles. Ainda assim, Alan Freed não pode ser considerado um vilão na história de Berry. Ele seguiu tocando os lançamentos do guitarrista, colocando-o em seus filmes e também escalando-o nos megashows que promovia. Foi com Freed, no entanto, que Chuck Berry sentiu pela primeira vez o gosto de ser passado para trás nos negócios.

De 1955 a 1959, Chuck Berry foi um dos maiores astros do planeta. As criações dele, como “Roll Over Beethoven”, “Carol”, “Brown Eyed Handsome Man”, “You Can’t Catch Me”, “School Day”, “Too Much Monkey Business”, “Back in the U.S.A.”, “Little Queenie”, “Memphis, Tennessee”, “Bye Bye Johnny” e “Johnny B. Goode”, estavam em todos os cantos. Nada melhor que essas canções para mostrar o que era ser um adolescente crescendo em meio a um tempo de incerteza, mas sem deixar de lado as coisas boas da juventude. Cheias de bom humor e atenção aos detalhes, as faixas dele logo se tornariam parte da cultura pop norte-americana. Ao vivo, Berry também era uma sensação, arrancando sorrisos quando executava o lendário “duck walk”, a dança na qual andava como um pato.

Em 1959, porém, tudo começou a desabar. O artista havia aberto em St. Louis um novo empreendimento inter-racial, chamado Club Bandstand. Entre os funcionários que contratou estava uma garota chamada Janice Escalanti, que iria trabalhar na chapelaria do clube. Segundo Berry, ela teria dito que tinha 20 anos. Ele relatou que a demitiu por faltar regularmente ao trabalho. Logo depois, Janice foi detida por prostituição; para piorar, na verdade ela tinha 14 anos, e afirmou ter tido relações sexuais com Berry.

Ele acabou indo a julgamento, ocorrido em 1962. O júri foi marcado por um tom racista, com o juiz chamando Berry de “crioulo”. A pena acabou sendo definida em um ano e meio de detenção em uma prisão federal. Quando saiu de lá, ele virou um sujeito desconfiado e pouco generoso. Carl Perkins, o mestre do rockabilly, falou em 1988 à Rolling Stone: “Nunca vi um homem tão mudado. Antes, ele era um cara descontraído. Quando tocamos juntos na Inglaterra em 1964, ele estava frio, distante e amargo. Sem dúvida, foi resultado da prisão”.

Foi uma queda da qual ele nunca se recuperou inteiramente. Porém, é difícil dizer o que ele de fato foi capaz de aprender, ou mesmo dizer o que aconteceu de verdade. Ele foi encurralado no episódio com Janice, ou, como algumas pessoas descreveram, agiu de maneira diabólica?

Em dezembro de 1987, Berry foi acusado de agressão em um incidente no Gramercy Park Hotel, em Nova York. O que se sabe é que ele socou o rosto de uma mulher, causando “lacerações na boca, ocasionando a necessidade de cinco pontos, dois dentes prejudicados e contusões na face”. Berry nunca falou sobre o assunto, embora em 1988 ele tenha se declarado culpado por uma acusação de agressão mais leve e pagado uma fiança de US$ 250.

Naquele mesmo ano, o guitarrista comprou o Southern Air Restaurant, perto de St. Louis. Foi acusado de instalar câmeras nos banheiros femininos, tendo secretamente gravado mulheres – algumas bem jovens – em variados estados de nudez. Também foram reveladas fotos de Berry posando nu com jovens mulheres brancas. Ele processou a revista que as publicou, dizendo que as imagens tinham sido roubadas. Pouco depois, diversas mulheres que foram gravadas no incidente dos banheiros processaram o músico. O caso acabou fora da justiça, em acordos que totalizaram quase US$ 1,2 milhão.

Aventuras sexuais por parte de roqueiros não eram incomuns, nem pornografia caseira. Mas algumas das imagens que escaparam da coleção pessoal de Berry eram bem peculiares. Um vídeo mostrava uma jovem nua em uma banheira enquanto ele urinava na boca dela. Quando Berry terminou, ela pediu por um beijo. “Baby, não posso beijar você”, ele disse. “Você cheira a mijo.”

O tratamento que Berry dava às mulheres foi o aspecto mais problemático da vida dele. Nos dias que se seguiram à sua morte, as estudiosas Catherine Strong e Emma Rush escreveram: “Muitas vezes nos conectamos à música porque nos identificamos com algo nela, e consequentemente com as pessoas que a criam. Reconhecer os delitos dessas pessoas pode diminuir o prazer que sentimos com a música... No entanto, ao mesmo tempo, é moralmente indispensável incluir o lado sombrio de Berry em textos históricos, obituários ou mesmo na discussão da música que ele fez. Excluir esses fatos passa a mensagem de que o abuso de garotas e de mulheres não tem importância e que pode ser superado ou até justificado diante da excelência musical”.

Após voltar à liberdade, em 1964, Chuck Berry notou que o mundo da música havia mudado, e a favor dele. Todo mundo que importava – Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Beach Boys, The Animals – reconhecia que Berry havia sido a maior influência do som que faziam. Nesse retorno, Berry gravou boas canções como “Nadine” e “No Particular Place to Go”. O interesse pelo trabalho em estúdio, no entanto, foi ficando cada vez menor, e as gravações se tornaram esporádicas. Para ele, o dinheiro vinha das apresentações ao vivo. Berry passou a se concentrar nesse outro aspecto da carreira, que lhe trouxe visibilidade, popularidade – e mais polêmica. O guitarrista não queria mais ter banda fixa. Abstêmio, falava que seus antigos companheiros musicais estavam sempre bêbados. Assim, começou a trabalhar com músicos que eram contratados na cidade da apresentação. Mas nada de introduções ou ensaios. Os instrumentistas chegavam e Berry apenas falava: “Olhem para as minhas pernas. Quando eu as levantar, vocês começam a tocar”. A banda tinha que adivinhar o que iria acontecer. Muitas vezes o resultado passava longe do desejado, com Berry cada vez menos inspirado. Diversos shows pareciam um concurso de amadores.

No começo dos anos 1970, um jovem e ainda desconhecido Bruce Springsteen foi jogado nessa fogueira ao ser contratado para acompanhar o pioneiro no palco. Hoje ele ri, mas diz que na época foi um sufoco. “Ele veio até a gente apenas cinco minutos antes de a apresentação começar”, lembrou Springsteen. “A porta abriu e lá veio ele sozinho, com um estojo de guitarra na mão.” Nervoso, Springsteen perguntou: “Bem, Chuck, o que vamos tocar?” O veterano respondeu apenas: “Músicas do Chuck Berry”.

O modus operandi das apresentações de Berry era tocar por uma hora (ou menos), sem bis ou pedidos especiais. E o artista exigia pagamento adiantado, em espécie, de preferência em notas usadas. Ele dizia que era o melhor jeito de controlar as finanças, já que havia sido passado para trás muitas vezes antes. Mesmo com as excentricidades e sempre colocando os promotores dos shows em apuros, Berry era muito requisitado, especialmente na Inglaterra. Um dos shows dele na terra da rainha em 1972, no Lanchester Arts Festival, em Coventry, foi gravado. O resultado saiu no álbum The London Chuck Berry Sessions. No setlist estava “My Ding-a-Ling”, uma brincadeira em referência ao próprio pênis que não deveria ser levada a sério. Mas a gravadora do músico lançou a faixa como single. Surpreendentemente, ela alcançou o primeiro lugar nos Estados Unidos e na Inglaterra. Apesar de a crítica achar a faixa um ponto baixo da carreira dele, Berry defendia a canção. “Muita gente gostou dessa faixa. Ainda gostam. E eu gosto dela porque essa musiquinha deixou minha carteira gorda e feliz! [risos]”, ele declarou em entrevista à revista inglesa Q, em 1987.

Dinheiro parecia ser uma obsessão para Berry. Ele fez fortuna na década de 1970. Mas em 1979 foi acusado pela receita federal norte-americana de sonegar impostos. Ele se declarou culpado. Teve que ficar quatro meses atrás das grades, na Lompoc Prison Camp, na Califórnia, além de prestar mil horas de serviços comunitários. “Sou um homem melhor”, falou depois sobre a experiência.

Ainda bem que, para Berry, o tempo nunca era perdido. Na prisão, ele escreveu Chuck Berry – The Autobiography, que saiu em 1987 pela Harmony Books. Os detratores comentaram que o livro realmente só poderia ter sido escrito pelo músico, já que ele seria muito pão-duro para pagar alguém para fazer a obra por ele. De qualquer maneira, essa autobiografia é essencial para se aprofundar em seu legado artístico. O Berry escritor era tão talentoso quanto o Berry letrista. Ele aproveitou o espaço para falar tudo o que sentia e pensava sobre a sociedade norte-americana e, é claro, discorreu muito sobre música.

Nas últimas três décadas, o patrimônio de Chuck Berry cresceu. Ele se sentia confortável no papel de patriarca do rock. Recebeu inúmeras honrarias. Em 1986, fez parte da primeira turma a entrar para o Hall da Fama do Rock and Roll. A última grande entrevista que concedeu foi em 2010, para a Rolling Stone EUA, em texto assinado por Neil Strauss. “Sou milionário, mas corto a grama”, falou na ocasião.

Mesmo com a idade avançada, ele nunca se aposentou de maneira oficial – por pouco, não morreu na estrada. E, surpreendentemente, com um disco inédito prestes a ser lançado. Chuck Berry se foi, mas, enquanto músicos de bar e bandas de garagem estiverem imitando os riffs que ele criou há mais de 60 anos e continuarem bradando “Go, Johnny, Go!”, ele seguirá vivo.

Com informações de Mikal Gilmore

A Palavra Final

Há quase 40 anos Chuck Berry não lançava um álbum de estúdio. Com Chuck, ele acerta as contas com o passado

O último álbum de estúdio de Chuck Berry foi Rock It (1979). Ninguém mais acreditava em um novo trabalho do músico até que, em 2010, ele revelou a Neil Strauss, na Rolling Stone, que estava gravando. Semanas antes da morte dele, foi anunciado que o álbum Chuck, o primeiro de inéditas em quase 40 anos, estaria em junho nas lojas. Como o single “Big Boys” deixou claro, nada de invenções. Blues, rock básico e jazz acelerado sempre foram as fontes principais do som de Berry e o padrão segue aqui. Ele revisita o passado. “Lady B. Goode” é o que o título sugere, uma atualização da imortal “Johnny B. Goode”. A caribenha “Havana Moon”, gravada por Berry nos anos 1950, desde cedo deixou de ser apresentada ao vivo por ele. Adepto da livre iniciativa, o guitarrista não gostou de ver a canção associada à ditadura estatal de Fidel Castro. Jurou que iria refazê-la e aqui está ela, com uma cara nova, rebatizada de “Jamaica Moon”. Já “3/4 Time (Enchiladas)” é uma divertida mistura de country com música latina. “She Still Loves You” é a surpresa, um rock psicodélico no qual a guitarra do músico exala lisergia. “Eyes of Man”, o encerramento, é a palavra final dele sobre a vida, uma canção com tom bíblico na qual Berry adverte sobre as armadilhas que cercam a alma do ser humano. É uma bela despedida.

O avô de todos nós

O guitarrista dos Rolling Stones, fã de Chuck Berry (e ocasional saco de pancadas dele), explica como o músico criou os padrões para a guitarra no rock

POR KEITH RICHARDS

Chuck Berry uma vez me deixou com um olho roxo. Depois de vê-lo tocando em Nova York, eu fui até o camarim. A guitarra dele estava no estojo, em um canto. Eu queria dar uma olhada, por interesse profissional, e comecei a mexer nas cordas. Chuck entrou e me deu uma porrada no olho esquerdo. Mas percebi que a culpa foi minha. Se eu entrasse no meu camarim e visse alguém mexendo na minha guitarra, teria todo o direito de dar um soco no cara, sabe? Apenas fui pego no pulo.

Ele também fazia coisas como me expulsar do palco. Vejo isso como um cumprimento, uma espécie de sinal de respeito. Senão, ele nem se importaria comigo. Chuck era um canalha, mas debaixo daquele jeito brusco existia um cara caloroso. Só que ele não dava o braço a torcer. Às vezes, sentávamos para ensaiar e percebíamos na hora que tínhamos uma sintonia. O sentimento se tornava bonito, algo totalmente diferente.

Chuck foi o avô de todos nós. Mesmo que você seja um guitarrista e ache que Chuck Berry não foi a sua maior influência, certamente ele influenciou o guitarrista que inspirou você. Ele é a pura essência do rock and roll. O jeito como se mexia e a exuberância dos ritmos que criava eram de deixar qualquer um de boca aberta. Ele usava o braço inteiro para tocar, incluindo o ombro e o cotovelo. A maioria de nós usa só o pulso; ainda estou praticando o lance com o ombro. Os guitarristas fazem caretas quando tocam as notas complicadas. Chuck apenas sorria.

E as composições dele, cara? “Too Much Monkey Business”? “Jo Jo Gunne”, “School Days”, “Back in the U.S.A.”? “Memphis, Tennessee” é intocável. Tem uma beleza própria, uma ternura intrigante. Existe realidade nela – é uma história pungente –, com uma bela sequência de acordes, tocada de forma brilhante. As músicas de Chuck eram aqueles momentos de encanto que você raramente consegue capturar em uma gravação. Mas o danado conseguia. E tudo isso em apenas dois minutos e meio.

Quando você é apenas um guitarrista iniciante, a música de Chuck o leva até a estratosfera. Tem um período de ouro no trabalho dele. Foi quando estava na gravadora Chess, tocando no estúdio com os caras certos – Willie Dixon (baixo) e Johnnie Johnson (piano). Eu sempre uso a palavra “exuberante” quando ouço os discos deles. Era tudo notável – a produção, o som, a energia. Depois dessa época, ele sempre parecia estar em busca de algo. O tempo que passou na prisão só atrapalhou. Ele retornou como um homem diferente.

Chuck era incrivelmente versátil. Podia tocar de tudo. Aprendeu muito sobre a guitarra com os caras do jazz – Charlie Christian e definitivamente T-Bone Walker, no conceito de dobrar as notas – e estava ligado nos compositores de standards. Era um grande fã do Nat King Cole Trio. Também gostava de música country. O som de Chuck é uma incrível mistura de tudo feito na América. Tem também elementos de música espanhola, além de coisas de Nova Orleans.

Quando os Rolling Stones tocavam nos clubes ingleses, no repertório tinha só blues e Chuck Berry, que, para mim, não é tão diferente. Adorávamos tocar “Around and Around”. A música dele não é tão simples como parece. E você sempre pode torná-la ainda mais interessante. A batida de suingue de jazz que ele usava dava um toque diferente. Este é o significado do rock and roll: ele pulsa.

Em 1986, quando filmávamos Chuck Berry – O Mito do Rock, eu fiquei hospedado na casa dele no Berry Park. Foi um sonho de infância que se tornou realidade – eu estou morando na casa de Chuck, montando uma banda com ele! Cada dia era uma aventura. Um dia, eu acordei às 3h da manhã e lá estava ele com uma enorme máquina limpando o carpete: “Isso tem que ser feito!”

Quando recebi a ligação informando que ele havia partido, não foi algo tão inesperado. Mas tive o mesmo sentimento estranho que tive quando Buddy Holly morreu, em 1959. Eu estava na escola e todo mundo reagiu com horror. Foi o mesmo agora. Me atingiu de um jeito mais duro do que eu esperava. Mas Chuck segurou as pontas até o final. Essa é outra coisa dele que eu pretendo imitar.

Visita Constante

Em um período de pouco mais de 20 anos, Chuck Berry veio ao Brasil seis vezes, sempre tocando os clássicos e agindo de maneira excêntrica

POR PAULO CAVALCANTI

O público brasileiro teve oportunidades de sobra para ver Chuck Berry no palco. Ele não se apresentou em nosso país quando estava no auge da carreira, na década de 1950 e em meados dos anos 1960. Mas, ainda que tenha demorado para vir, a espera valeu a pena. O cantor gostou tanto da recepção que começou a bater cartão por aqui.

A estreia no país, em setembro de 1993, foi com toda a pompa, como parte do line-up do extinto Free Jazz Festival. E não foi apenas Berry, que na época tinha 63 anos, quem fez o debute aqui. O amigo e contemporâneo Little Richard dividiu o holofote com o guitarrista. Os shows de ambos (com Richard abrindo para Berry) aconteceram no Rio de Janeiro, no Hotel Nacional, e em São Paulo, no extinto Palace. Cada um tocou por cerca de uma hora e ambos os locais foram pequenos para receber a turma que tomou todos os espaços dançando e cantando ao som dos clássicos das duas lendas do rock.

Em São Paulo, havia uma demanda maior pelos shows. A solução foi fazer uma apresentação extra no Estádio do Pacaembu (naquele tempo, ainda eram permitidos eventos do tipo no local). O palco foi montado no gramado e o público foi acomodado em uma das partes da arquibancada. O repertório de Berry foi praticamente o mesmo das duas apresentações realizadas um pouco antes, incluindo as duradouras “Johnny B. Goode”, “Rock and Roll Music”, "Roll Over Beethoven”, a latina “Hey, Pedro” e a infame “My Ding-a-Ling”. Ele executou o duck walk apenas uma vez, mas foi o suficiente para que o público vibrasse. O baixista que Berry trouxe não funcionava apenas como músico: ele era uma espécie de faz-tudo, servindo até como motorista para o cantor. Na bateria, estava o brasileiro Carlos Bala, um instrumentista refinado e com influência de jazz.

Nessa primeira passagem pelo Brasil, Berry alimentou o folclore que existia em torno dele. Como era de hábito, nem mesmo se deu ao trabalho de trazer a guitarra na bagagem. Os produtores tiveram que se virar para conseguir o instrumento instrumento. O cantor e fã Marcelo Nova, líder do Camisa de Vênus, foi acionado. A preciosa Gibson modelo Chet Atkins de propriedade de Nova foi emprestada ao lendário pai do rock and roll, que antes de voltar para casa agradeceu ao proprietário, elogiou e entregou o instrumento intacto.

Berry se mostrava pouco exigente se comparado aos astros do rock que vieram depois dele. O único “luxo” do qual fazia questão eram cigarros mentolados. Era um homem de poucas palavras, evitava pessoas que não tinham relação com o negócio das turnês e não concedia entrevistas – no Brasil, sempre preferiu permanecer longe da imprensa. Mas, se no geral evitava socializar, foi carinhoso e atencioso com cadeirantes que participavam de um evento no mesmo dia no Pacaembu. Até permitiu ser fotografado com integrantes do grupo.

Berry retornou ao Brasil em maio de 2002 para se apresentar exclusivamente no rodeio de Jaguariúna, cidade do interior paulista. Foi um show animado, com todos os clássicos. Ele só veio novamente ao país em junho de 2008. Foram apresentações no HSBC Brasil (São Paulo), no Teatro Guaíra (Curitiba), no Vivo Rio (Rio de Janeiro) e no Pepsi on Stage (Porto Alegre). Junto veio o filho Charles Berry Jr. para ajudar na guitarra. Durante “Reelin’ and Rockin’”, Berry convidou várias garotas para subir ao palco e dançar enquanto ele tocava.

Em agosto de 2009, o guitarrista veio para se apresentar, de forma rotineira, na antiga Via Funchal (São Paulo), no Chevrolet Hall (Belo Horizonte), no Siará Hall (Fortaleza) e no Teatro do Bourbon Country (Porto Alegre). No ano seguinte, em maio de 2010, veio novamente. Ele voltou a cidades em que havia tocado antes – Porto Alegre (Teatro do Bourbon Country), Rio de Janeiro (Vivo Rio) e São Paulo (HSBC Brasil). Inesperadamente, foi anunciado que ele retornaria ao país em abril de 2013, desta vez em um show exclusivo. O local escolhido foi o Teatro Positivo, em Curitiba. O pioneiro se despediu do Brasil já debilitado e tocando em marcha lenta, mas com o habitual carisma.

A Essência de Chuck Berry

Os hinos, os hits e as peculiaridades que definiram o som da guitarra dentro do rock e influenciaram gerações de músicos

Maybellene 1955

A guitarra característica do rock and roll dá seus primeiros passos. O single de estreia de Chuck Berry aperfeiçoou a junção dele de música caipira, blues urbano e jazz envenenado, tirando seu groove de “Ida Red”, western swing gravado em 1938 por Bob Wills and His Texas Playboys. São dois minutos maníacos reunindo o vernáculo da cultura automobilística, gíria hipster e solos de guitarra acelerados. Uma obra-prima.

Wee Wee Hours 1955

Levou uma hora para Berry escrever “Wee Wee Hours”, o blues que foi escolhido para ser o lado B de “Maybellene”. Ele se inspirou em uma mulher chamada Margie, pela qual se apaixonou quando tocava em bailes do Exército.

Thirty Days (To Come Back Home) 1955

O bom humor do artista sobressai nesta faixa, na qual ele dá 30 dias para a amante voltar para casa – caso contrário, ele promete levar o caso às Nações Unidas. O solo é um dos mais marcantes da carreira do guitarrista.

Roll Over Beethoven 1956

Este hino é um carinhoso afago de Berry para a irmã Lucy, que vivia tocando música clássica no piano da família e não dava chance para ele praticar. A canção, sacaneando Beethoven e Tchaikovsky, se tornou um hino de batalha do rock and roll, fazendo nascer uma nova era.

Too Much Monkey Business 1956

Aqui temos um verdadeiro catálogo de tribulações modernas: trabalho, compras, namoro, escola e guerra. Berry disse que poderia escrever mais uma centena de versos sobre coisas que amolam o ser humano.

Brown Eyed Handsome Man 1956

Berry fez esta canção depois que excursionou por áreas da Califórnia habitadas por latinos e negros. “Eu não vi muitos olhos azuis por lá”, afirmou. O que ele viu foi um latino bonitão sendo preso por vadiagem. Como resposta, escreveu uma das mais marotas alegorias raciais da história do rock.

Havana Moon 1956

Esta história de um homem em Cuba sentindo falta da namorada tem raízes em “Calypso Blues”, de Nat King Cole, canção que Berry tocava no Cosmopolitan Club, em St. Louis. Ele tentou compor sua própria canção latina e o resultado foi uma de suas gravações mais devastadoras.

Rock & Roll Music 1957

“O rock and roll me aceitou e me deu dinheiro”, disse Berry. “Segui esse caminho porque queria ter meu próprio lar.” Ele celebrou a música que amava com esta apaixonada declaração dos poderes de transformação do rock. Não à toa, foi regravada por tudo quanto é banda, dos Beatles ao REO Speedwagon.

School Days 1957

Berry tinha 30 anos quando escreveu “School Days”, mas sua evocação da vida colegial ajudou a estabelecer o rock como um retrato da juventude norte-americana. Os detalhes da letra vieram das memórias do músico. A imortal frase “Hail, hail rock and roll” marca a canção de forma definitiva.

Sweet Little Sixteen 1958

Este clássico celebra o poder do rock and roll – é uma ode a uma fã de 16 anos e a várias cidades dos Estados Unidos. Os Beach Boys criaram uma nova letra para a mesma base e a chamaram de “Surfi n’ U.S.A.” Berry ameaçou processar e ganhou o crédito de composição. Depois da morte dele, Brian Wilson declarou: “Chuck me ensinou a escrever rock and roll”.

Johnny B. Goode 1958

Foi o primeiro hit do gênero a falar sobre o estrelato no rock and roll. Berry disse à Rolling Stone em 1972 que o personagem-título era “mais ou menos” baseado nele mesmo. A introdução se tornou uma assinatura sonora que foi copiada por muita gente, especialmente Keith Richards.

Carol 1958

Para compor “Carol”, Berry observou a filha de uma mulher com a qual ele estava tendo um relacionamento. Francine Gillium, assistente do cantor, tomava conta da garota e o músico ouviu as duas conversando sobre as tribulações da vida de adolescente. A letra captura toda a intriga e emoção de um jovem amor.

Around and Around 1958

O lado B de “Johnny B. Goode” conta a história de uma festa de arromba que durou a noite toda e no final teve que ser interrompida pela polícia. O solo de guitarra nasceu de uma jam de duas horas que ele e a banda fizeram antes de uma apresentação. “Foi quase um show antes do show”, contou Berry.

Almost Grown 1959

A letra deste rock parece já antecipar a rebeldia de “My Generation”, do The Who: “Não nos amole, nos deixe em paz/ Afinal, já somos quase adultos”. O apoio vocal é feito pelos companheiros da Chess Records Etta James e The Moonglows, um grupo que incluía Marvin Gaye, na época com apenas 20 anos.

Little Queenie 1959

Com uma guitarra que ecoa “Johnny B. Goode” e a expressão “Go! Go!” sendo usada no refrão, “Little Queenie” mostra como Berry sabia variar os temas dentro de um mesmo contexto. A letra mistura ousadia romântica com introspecção e dúvidas sobre si.

Back in the USA 1959

Em 1959, Berry excursionou pela Austrália e testemunhou o quanto a população aborígene era maltratada. Quando voltou para casa, criou este tributo à liberdade e à diversidade que existiam em seu país, e falou de arranha-céus, drive-ins, hambúrgueres e cidades de Nova York a Los Angeles.

Memphis, Tennessee 1959

Gravada de forma caseira, com Berry posteriormente acrescentando os instrumentos no estúdio, “Memphis, Tennessee” foi inspirada em “Long Distance Call”, do amigo Muddy Waters. É um lamento sobre um homem que sente saudades da filhinha de 6 anos, e um dos momentos mais vívidos do músico em termos de letra.

Let It Rock 1960

Berry conta uma história na qual os trabalhadores em uma linha de trem quase acabam mortos, em um frenesi que dura um minuto e 43 segundos. Ao vivo, ele a estendia por dez minutos.

Come On 1961

A namorada se foi, o carro não funciona e ele recebe ligações por engano. A canção traz um dos mais inventivos arranjos de Berry, com baixo, piano, sax e bateria em ritmo sincopado. Martha, a mãe do artista, pode ser ouvida no refrão.

Nadine 1964

Berry nunca fez um uso tão brincalhão da linguagem quanto aqui, descrevendo a procura por uma perfeição que está fora de alcance. Na música, um homem vê aquela que acha que será sua futura noiva em um Cadillac cor de café. “Eu nunca vi um Cadillac cor de café”, disse Bruce Springsteen no filme Chuck Berry – O Mito do Rock, “mas graças a Berry posso visualizar como seria um”.

No Particular Place to Go 1964

Esta história sobre frustração adolescente foi o primeiro single de Berry a se beneficiar da visibilidade renovada dele após a Invasão Britânica, em 1964. “Ele fazia letras inteligentes enquanto o pessoal ficava só no ‘Oh, baby, eu te amo’”, disse John Lennon.

You Never Can Tell 1964

Mesmo estando preso, acusado de ter tido relações sexuais com uma garota de 14 anos, Berry escreveu esta letra sobre um “casamento adolescente”. A guitarra quase não aparece – saxofone e piano é que se destacam. Foi redescoberta de forma memorável em 1994 em uma cena do filme Pulp Fiction: Tempo de Violência.

Promised Land 1964

Uma parábola sobre a era dos direitos civis, “Promised Land” foi escrita por Berry quando estava na prisão. O problema era acertar o itinerário entre as cidades descritas na letra. “As instituições penais não ofereciam nenhum tipo de mapa, já que tinham medo que servissem para rotas de fuga”, contou.

Tulane 1970

No final dos anos 1960, Berry tentou chegar ao mercado hippie e até gravou, em 1967, um LP ao vivo acompanhado pela Steve Miller Blues Band. “Tulane” – sobre um casal que gerencia uma loja alternativa e acaba sendo preso por posse de drogas – é uma simpática tentativa dele de se manter atualizado com os novos tempos.

Reelin’ and Rockin’ 1972

Originalmente o lado B de “Sweet Little Sixteen”, esta é uma das grandes canções de boogie-woogie de Berry, com piano proeminente e versos que vão se repetindo, mas sempre acrescentando uma nova informação. Uma versão ao vivo se tornou hit em 1972.

Textos: Brian Hiatt, David Browne, Hank Shteamer, Joe Levy, Jon Dolan, Kory Grow